Logo no início da minha carreira de professora de português para estrangeiros, eu tinha uma aluna canadense/sul-coreana que uma vez, depois de aprender a como pedir ajuda às pessoas em português, entrou em uma loja em um shopping e foi logo perguntando “Olá, você poderia me ajudar?” e, automaticamente, a vendedora respondeu Pois não. Minha aluna simplesmente virou e saiu da loja, sem entender a grosseria da vendedora.
Quando ela me contou isso, imaginei a reação dela, mais ou menos, como esta:
Coitada! Aqui no Brasil pois não, quando usado em uma resposta, significa o mesmo que dizer, “sim” ou “claro” e é bastante educado. Veja outro exemplo retirado do texto “O que é jeitinho?”, publicado no Jornal do Brasil, em 22 de setembro de 1999 (Leia na íntegra).
[…]
Cena três – Um americano, o jornalista John Allius, que viveu muitos anos no Brasil; uma feijoada insistente e uma família do interior paulista, muito hospitaleira.
– O senhor quer mais um pouquinho de feijoada? (pela quarta vez).
– Pois não – diz Allius, e faz menção de retirar o prato da mesa.
– Ora, que maravilha! O senhor gostou mesmo da minha feijoada – diz a dona da casa despejando mais uma generosa concha de feijão do prato do gringo aterrorizado.
[…]
O texto mostra outro exemplo, similar ao da minha aluna, de falha na comunicação entre um estrangeiro e um brasileiro, pois o americano pensava que estava recusando um novo prato, mas na verdade estava dizendo SIM, da forma mais educada possível! Hehe
O linguista Ataliba T. de Castilho comenta essa expressão em sua entrevista no Programa do Jô (20:42):
Já quando usado em uma pergunta, “pois não?” significa “Como posso ajudar?”, “O que você precisa?”. Por exemplo, você vai a um restaurante, chama o garçom e ele diz:
Garçom: Pois não.
Cliente: O cardápio, por favor.
Li em alguns lugares que essa expressão é a contração da expressão “pois não havia de”, que mostra que é impossível dizer não para o pedido, mas eu, sinceramente, acredito que seja muito mais fácil entender seus usos atuais do que voltar na história e descobrir de onde vem.
Se quiser rir mais um pouquinho dessas falhas de comunicação, indico a leitura da crônica Pá, Pá, Pá, de Luís Fernando Veríssimo.
PÁ, PÁ, PÁ
Luís Fernando Veríssimo
A americana estava há pouco tempo no Brasil. Queria aprender o português depressa, por isto prestava muita atenção em tudo que os outros diziam. Era daquelas americanas que prestam muita atenção.
Achava curioso, por exemplo, o “pois é”. Volta e meia, quando falava com brasileiros, ouvia o “pois é”. Era uma maneira tipicamente brasileira de não ficar quieto e ao mesmo tempo não dizer nada. Quando não sabia o que dizer, ou sabia mas tinha preguiça, o brasileiro dizia “pois é”. Ela não aguentava mais o “pois é”.
Também tinha dificuldade com o “pois sim” e o “pois não”. Uma vez quis saber se podia me perguntar uma coisa.
– Pois não – disse eu, polidamente.
– É exatamente isso! O que quer dizer “pois não”?
– Bom. Você me perguntou se podia fazer uma pergunta. Eu disse “pois não”. Quer dizer “pode, esteja à vontade, estou ouvindo, estou às suas ordens…”
– Em outras palavras, quer dizer “sim”.
– É.
– Então por que não se diz “pois sim”?
– Porque “pois sim” quer dizer “não”.
– O quê?!
– Se você disser alguma coisa que não é verdade, com a qual eu não concordo, ou acho difícil de acreditar, eu digo “pois sim”.
– Que significa “pois não”?
– Sim. Isto é, não. Porque “pois não” significa “sim”.
– Por quê?
– Porque o “pois”, no caso, dá o sentido contrário, entende? Quando se diz “pois não”, está-se dizendo que seria impossível, no caso, dizer “não”. Seria inconcebível dizer “não”. Eu dizer não? Aqui, ó.
– Onde?
– Nada. Esquece. Já “pois sim” quer dizer “ora, sim!” “Ora se eu vou aceitar isso.” “Ora, não me faça rir. Rá, rá, rá.”
– “Pois” quer dizer “ora”?
– Ahn… mais ou menos.
– Que língua!
Eu quase disse: “E vocês, que escrevem “tough” e dizem “taf”? mas me contive. Afinal, as intenções dela eram boas. Queria aprender. Ela insistiu:
– Seria mais fácil não dizer o “pois”.
Eu já com preguiça.
– Pois é.
– Não me diz “pois é”!
Mas o que ela não entendia mesmo era o “pá, pá, pá”.
– Qual o significado exato de “pá, pá, pá”?
– Como é?
– “Pá, pá, pá”.
– “Pá” é pá. “Shovel”. Aquele negócio que a gente pega assim e…
– “Pá” eu sei o que é. Mas “pá” três vezes?
– Onde foi que você ouviu isso?
– É a coisa que eu mais ouço. Quando brasileiro começa a contar história, sempre entra o “pá, pá, pá”.
Como que para ilustrar nossa conversa, chegou-se até nós, providencialmente, outro brasileiro. E um brasileiro com história:
– Eu estava ali agora mesmo, tomando um cafezinho, quando chega o Túlio. Conversa vai, conversa vem e coisa e tal e pá, pá, pá…
Eu e a americana nos entreolhamos.
– Funciona como reticências – sugeri eu – Significa, na verdade, três pontinhos. “Ponto, ponto, ponto”.
– Mas por que “pá “ e não “pó”? Ou “pi” ou “pu”? Ou “etecetera”?
Me controlei para não dizer – “E o problema dos negros nos Estados Unidos”?
Ela continuou:
– Por que tem que ser três vezes?
– Por causa do ritmo. “Pá, pá, pá”. Só “pá, pá” não dá.
– E por que “pá”?
– Porque sei lá – disse, didaticamente.
O outro continuava sua história. História de brasileiro não se interrompe facilmente.
– E aí o Túlio veio com uma lengalenga que vou te contar. Porque pá, pá, pá…
– É uma expressão utilitária – intervim – Substitui várias palavras (no caso toda a estranha história do Túlio, que levaria muito tempo para contar) por apenas três. É um símbolo de garrulice vazia, que não merece ser reproduzida. São palavras que…
– Mas não são palavras. São só barulhos. “Pá, pá, pá”.
– Pois é – disse eu.
Ela foi embora, com a cabeça alta. Obviamente desistira dos brasileiros. Eu fui para o outro lado. Deixamos o amigo do Túlio papeando sozinho.
Crônica extraída do livro “O Analista de Bagé”, L & PM Editores Ltda – Porto Alegre, 1981, pág. 58. (Disponível em: http://euescrevcl.blogspot.com.br/2012/02/pa-pa-pa-luis-fernando-verissimo.html)
Professora Ana Gabatteli
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